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José Luís Peixoto convidaAndréa del Fuego
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Por AndréaDel Fuego
“Assim iniciei meus passos no Alentejo, entendendo um território não mensurável, o relógio não tem ponteiros suficientes para um tempo que é maior numa terra grávida de sol e trabalho.”
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Andréa del Fuego é uma das vozes mais originais da literatura brasileira contemporânea. Nascida em São Paulo em 1975, tem um mestrado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, coordena oficinas de escrita literária há mais de dez anos e escreve como quem observa o mundo por uma fresta rara: com lucidez, estranheza e beleza. O seu nome de batismo é Andréa Fátima dos Santos, mas adotou o pseudónimo “del Fuego” em homenagem a Luz del Fuego, bailarina, naturista e feminista, e a primeira artista brasileira a surgir nua em palco — e desde então, a sua escrita arde com força própria.
Em 2011, aos 36 anos, venceu o Prémio José Saramago com Os Malaquias (editado em Portugal, primeiramente em 2012), uma saga familiar. Em 2013, o livro As Miniaturas vê a luz do dia, uma narrativa poética e delicada que explora a tênue fronteira entre o sonho e a realidade, onde o quotidiano se entrelaça com o onírico, desafiando as convenções da existência. Anos depois, em 2021, provocou leitores com A Pediatra, retrato mordaz de uma médica que rejeita vínculos afetivos e questiona os rituais da maternidade moderna, obra que já viu os direitos vendidos para o cinema e o teatro.
Além de romances, já publicou coletâneas de contos (Minto enquanto posso, Nego tudo e Engano seu), antologias, crónicas e literatura juvenil (Sociedade da Caveira de Cristal, Quase caio e Irmãs de pelúcia). A autora conquistou ainda o prémio Literatura Para Todos do Ministério da Educação com a novela Sofia, o cobrador e o motorista. Neste momento, o seu trabalho está traduzido e publicado em vários países, como Alemanha, Itália, França, Israel, Roménia, Suécia, Kuwait e Argentina.
Ler Andréa del Fuego é sair da rotina da linguagem — e entrar num território onde aquilo que, à partida, parece inusitado ilumina o real.
Para ouvir Andréa del Fuego a ler um excerto sobre Estremoz, Vila Viçosa e Marvão, do capítulo “A grande e ardente terra do Alentejo” da obra Viagem a Portugal, de José Saramago.
A grande e ardente terra de Alentejo
Uma flor da rosa
(...)
Marvão vê-se de Castelo de Vide, mas de Marvão vê-se tudo. O viajante exagera, mas essa é justamente a impressão que sente quando ainda lá não chegou, quando vai na planície e lhe surge, de repente, agora mais perto, o morro altíssmo que parece erguer-se na vertical. A mais de oitocentos metros de altitude, Marvão lembra um daqueles mosteiros gregos do monte Athos aonde só se pode chegar metido em cestos puxados à corda, com o abismo aos pés. Não são precisas tais aventuras. A estrada sofre para atingir o alto, são curvas e curvas num largo arco de círculo que rodeia a montanha, mas enfim o visitante pode pôr pé em terra e assistir ao seu próprio triunfo. Porém, se é homem amante da boa justiça, antes de extasiar-se diante das largas vistas, haverá de recordar-se daquelas duas filas de árvores que em duzentos ou trezentos metros ladeiam um trecho de estrada logo depois de Castelo de Vide: alameda formosa de robustos e altos troncos, se um dia se achar que sois um perigo para o trânsito de altas velocidades do nosso tempo, oxalá vos não deitem abaixo e vão construir a estrada mais longe. Talvez um dia gente de gerações futuras venha aqui interrogar-se sobre as razões destas duas filas de árvores tão regulares, tão a direito. É o viajante, como se vê, muito previdente: se não há resposta para o rosto humano do Salvador do Mundo, seja ela, para o mistério da alameda inesperada, encontrada aqui.
É verdade. De Marvão vê-se a terra quase toda: para os lados de Espanha avista-se Valência de Alcântara, São Vicente e Albuquerque, além duma chusma de pequenas povoações; para sul, pelo desfiladeiro que separa a serra de São Mamede e a outra, apenas seu contraforte, serra da Ladeira da Gata, podem-se identificar Cabeço de Vide, Sousel, Estremoz, Alter Pedroso, Crato, Benavila, Avis; a oeste e noroeste, Castelo de Vide, onde o viajante ainda há pouco estava, Nisa, Póvoa e Meadas, Gáfete e Arez; enfim, a norte, estando límpida a atmosfera, a última sombra de azul é a serra da Estrela: não espanta que distintamente se vejam Castelo Branco, Alpedrinha, Monsanto. Compreende-se que neste lugar, do alto da torre de menagem do Castelo de Marvão, o viajante murmure repeitosamente: «Que grande é o mundo.»
(...)
É proibido destruir os ninhos
De Estremoz ficou o viajante a conhecer pouco mais do que a parte alta, isto é, a vila velha e o castelo. Dentro dos muros, as ruas são estreitas. Cá para baixo, abundando o espaço, não já vila, mas cidade, Estremoz alargase e quase perde de vista as suas origens, mesmo sendo a celebrada Torre das Três Coroas tão evidente apelo. Em nenhum lugar sentiu tanto o viajante a demarcação de muralhas, a separação entre os de dentro e os de fora. Será, contudo, uma impressão pouco mais que subjectiva, sujeita portanto a caução, que o viajante, claro está, não pode oferecer.
Branquíssimas de cal, usando o mármore como pedra comum, as casas da vila alta são, por si sós, motivo para visitar Estremoz. Mas lá em cima está a torre já falada, com os seus decorativos balcões ameados e o que resta do Paço de D. Dinis, a galilé de colunas geminadas onde o viajante foi encontrar representações da Lua e cordeiros. Está a sete-centista Capela da Rainha Santa Isabel, com o seu coro teatral e os ornamentadíssimos azulejos que representam passos da vida da milagrosa senhora que transformava pão em rosas à falta de poder fazer de rosas pão. E está o Museu Municipal que tem bastante para ver e muito para não esquecer.
Deixa o viajante de parte aquelas peças que poderia encontrar, sem surpresa, noutros museus, para poder maravilhar-se, à vontade, com os bonecos de barro que de Estremoz tomaram o nome. Maravilhar-se, diz ele, e não há termo melhor. São centenas de figurinhas, arrumadas com critério e gosto, e cada uma delas justificaria exame demorado. O viajante não sabe para onde virar-se: chamam-no tipos populares, cenas do trabalho rural, imagens de presépio ou de altar doméstico, maquinetas de diversa inspiração, um mundo a que não é possível dar inteira volta. Um exemplo bastará, uma só vitrina, onde se juntam, em organizada confusão, «pretos de pé e a cavalo: amazona e cavaleiros, pároco a cavalo; guardador de borregos, homem comendo as migas, homem fazendo a açorda; sargentos — de pé ou sentados no jardim; peralta do campo, tocador de harmónio; primaveras com ou sem grinalda; tipos populares — castanheira, leiteiro, aguadeiro; pastoras com fuso ou guardando galinhas ou perus ou borregos; mulheres do bando, lavando na selha, passando a ferro, entoucando-se a um espelho ou tomando chá; dama de pezinhos; matança do porco com três figuras e as mulheres dos enchidos». Oh, que maravilha, torna a dizer. A Estremoz irás, seus bonecos verás, tua alma salvarás. Aí fica um ditado inventado pelo viajante para passar à história.
Ficaria também ele, mas não pode. Depois de contemplar a infinda paisagem que de uma e outra parte se avista, desce às terras baixas, modo de dizer que foi ao Rossio, onde, a um lado, está a Igreja de São Francisco. Foi neste convento que morreu D. Pedro I, e aos frades daqui deixou o coração. Se é verdade que tomaram os frades a herança, em Alcobaça, na hora de ressurgir, não terá Pedro coração para dar a Inês.
(...)
A caminho de Vila Viçosa, de um lado e do outro da estrada, encontra o viajante abundância de pedreiras de mármore. Estes ossos da terra ainda trazem agarrada a carnação do barro que os cobria. E por estar falando de ossos, nota o viajante que à sua direita se levantam, ao fundo do horizonte, as alturas da serra de Ossa, que significa ursa, e não a fêmea do osso, que não a tem. Como se vai vendo e ilustrando, nem tudo o que parece é.
Em Vila Viçosa, vai-se ao Paço Ducal. Não se exime o viajante a esta obrigação, que é também gosto bastante, mas haverá de confessar que estes palácios o deixam sempre em estado muito próximo da confusão mental. A plétora de objectos, o excelente ao lado do medíocre, a sucessão das salas, fatigam-no aqui como já o tinham fatigado em Sintra ou Queluz. Ou em Versalhes, sem querer parecer presunçoso. Contudo, é inegável que o Paço de Vila Viçosa justifica uma visita tão atenta quanto o permitem os horários que hão-de ser cumpridos pelos guias. Nem sempre o objecto apontado por digno de interesse é o que o viajante mais estimaria apreciar, mas a escolha obedecerá provavelmente a um padrão médio de gosto com o qual se pretende satisfazer toda a gente. Em todo o caso, estará garantida a unanimidade para as salas das Virtudes e das Duquesas, ou a de Hércules, na ala norte, e para as salas da Rainha e de David, com distinção particular para o rodapé de azulejos de Talavera que decora a segunda. Magníficos são também os caixotões da Sala dos Duques, e de grande beleza o oratório da duquesa D. Catarina, com o seu tecto pintado de temas inspirados na decoração pompeiana. Não falta pintura em Vila Viçosa, muita de portugueses contemporâneos, e também algumas boas cópias quinhentistas, em particular a do Descimento da Cruz de Van der Goes. E se o viajante foi ver a cozinha e espantar-se com o número e variedade dos utensílios de cobre, se viu as armas, armaduras e arneses, se não perdeu a cocheira de D. João V, é porque tudo é preciso olhar para conhecer as vidas dos duques e de quem os servia, ainda que, no que a estes toca, não informe muito a visita ao Paço.
Cá fora, o viajante dá uma volta à estátua equestre de D. João IV. Acha-a mana mais capaz daquela que em Lisboa está, de D. João I, o que, evidentemente, não lisonjeia a primeira nem valoriza a segunda. E para destes males aliviar o coração, vai o viajante à vila velha, que tem a particular beleza dos casarios alentejanos antigos. Antes de subir ao castelo, que muitos viajantes erradamente descuidam, entra na Igreja de Nossa Senhora da Conceição, forrada de cima a baixo de azulejos policromos, um exemplo mais a proclamar como viemos perdendo o gosto deste esplêndido material ou como o adulterámos nas modernas utilizações.
O viajante apreciou, como convinha, a imagem do orago que D. João IV, sem ter em conta as divinas vontades, coroou e proclamou padroeira de Portugal, e ainda outros azulejos, estes de Policarpo de Oliveira Bernardes, artista de farta e qualificada produção. Mas sendo, como doutras vezes já demonstrou, tão atento às pequenas e quotidianas coisas, cuidando embora de não descuidar as raras e grandes, não se estranhará que tenha reparado nas substanciais arcas de esmolas de trigo e azeite, colocadas à entrada, e também nas imponentes caixas de esmolas, uma para a bula da cruzada, mais antiga de desenho e letra, outra para o orago, teatral como um retábulo barroco. Posta cada uma de seu lado da nave central, encostadas às colunas, estão ali para solicitar a generosidade do crente. Quem na igreja matriz de Vila Viçosa entrar com disponibilidade de dinheiro, azeite ou trigo, duro coração terá se não sair aliviado.
O castelo de Vila Viçosa, refere-se o viajante ao denominado Castelo Novo, obra quinhentista mandada fazer pelo duque D. Jaime, é uma construção claramente castrense. Tudo nele se subordina à essencial função militar. Uma fortificação assim, com muros que em alguns lugares chegam a atingir quatro e seis metros de espessura, foi concebida a pensar em grandes e duros cercos. O fosso seco, os poderosos torreões cilíndricos avançados em modo de cobrirem, cada um deles, dois lados do quadrilátero, as largas rampas interiores para a movimentação dos soldados, da artilharia de defesa e até, provavelmente, dos animais de tiro, deram a respirar ao viajante, como raramente lhe tem acontecido, e nunca tão intensamente, uma atmosfera bélica, o cheiro da pólvora, apesar da ausência total de instrumentos de guerra. É dentro deste castelo que está a Alcáçova dos Duques, com alguma boa pintura, e nele se encontram instalados, bem instalados, seja dito de passagem, o Museu Arqueológico e o Arquivo da Casa de Bragança, acervo riquíssimo de documentação ainda não totalmente explorado. O viajante viu, com algum desânimo, afixada numa parede em lugar de evidência, uma macrofotografia de um documento assinado por Damião de Góis, poucas semanas antes de o prender a Inquisição. Desânimo não será a palavra justa, digamos melancolia, ou cepticismo melancólico, ou qualquer outra sensação indefinível, aquela que vem às sensibilidades diante do irremediável. É como se o viajante, sabendo que Damião de Góis vai ser preso porque lho dizem as datas e os factos, tivesse obrigação de emendar a história. Simplesmente, não pode: para emendar a história, é preciso, de cada vez, emendar o futuro.
“O trajeto é a semente da viagem, por caminhada ou num veículo, pois aquilo que nos chega na velocidade do passo ou do motor, é moldura de uma história.”
“Há terra no interior do sol
Iniciamos os primeiros passos no Jardim Municipal de Estremoz. Antes, um chafariz cintila num lago de água claríssima aumentando o espectro solar inclemente, ou como escreveu José Saramago, um sol que nada esconde, pois estamos “sob o sol da franqueza”. No chafariz, de 1852, um verso sem autoria: “corre o tempo velozmente”. Ao redor, um relógio de sol com tampo de mármore marcando a hora errada, como notou José Luís Peixoto. Assim iniciei meus passos no Alentejo, entendendo um território não mensurável, o relógio não tem ponteiros suficientes para um tempo que é maior numa terra grávida de sol e trabalho. Entramos no Centro Interpretativo do Boneco de Estremoz, Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Já os nomes me pescam. Estamos diante de barristas, artesãos do barro, como informa a instituição, uma arte figurativa que se utiliza do barro como matriz sagrada e profana. Me agacho para me aproximar das peças, encontro o “Lanceiro a cavalo com bandeira” da artista Liberdade da Conceição. O cavalo é menor que o cavaleiro, penso duas camadas: há uma espécie de luta infantil, assim como uma luta que nunca cessa, mesmo nas brincadeiras.
José Luís Peixoto, durante nossa caminhada pela vida alentejana moldada em barro, me faz conhecer o canto alentejano ali mesmo. Ouvimos a voz profunda, ela também pura terra e sol fazendo cozinhar a mim, quase em um boneco como testemunho do desafio, o canto à terra diz: “os calos são os anéis de um homem trabalhador”. Me diz José, o canto também é Patrimônio Imaterial da Humanidade.
Paramos, logo depois, no café A Cadeia Quinhentista. Vi passar por mim bandejas exibindo todas as formas com as quais se pode vir a conhecer os ovos, alimento essencial e solar, mais uma vez o sol, sempre ele, a contorcer, secar e exigir que ninguém pare no caminho. Entre pudins e pão-de-lós, me nocauteou o leite frito: uma nuvem cremosa envolta em casca crocante descansando em molho de leite, gemas e especiarias. É possível esquecer o mundo pela boca, penso enquanto saboreio, basta se enternecer com o leite frito.
Seria reduzir a viagem se a percebêssemos apenas ao chegar ao destino, quando o corpo desperta para o registro. O trajeto é a semente da viagem, por caminhada ou num veículo, pois aquilo que nos chega na velocidade do passo ou do motor, é moldura de uma história. Entre Estremoz e Vila Viçosa, entre um lugar e outro, fui apresentada aos sobreiros, árvore que produz a cortiça, valiosa casca de uma árvore de copa larga e tronco generoso. O ecossistema do Alentejo, me diz José Luís Peixoto, foi criado pelos homens. Também me explica que foi criado há séculos, o montado, dando condições para os porcos, sobreiros e oliveiras de equilíbrio delicado. Alentejo concentra 33% dos sobreiros do mundo, 21% da área florestal de Portugal. Só atualmente a cortiça é rara. No passado, diz José, quem perdia uma disputa qualquer, ganhava uma medalha de cortiça.
Chegamos ao Paço Ducal em Vila Viçosa. Impressionante. No palácio que abriga duzentas salas, está a Fundação da Casa de Bragança, um pedido deixado em testamento pelo último rei de Portugal, Manuel II. Chama atenção as tapeçarias do século XVII, nas paredes, há tanto quadros quanto tapeçarias. No andar debaixo, ficavam os guardas e os funcionários. Logo acima, os aposentos. A construção teve início em 1501, sendo concluído trezentos anos depois. Os retratos são sempre de pessoas e paisagens, como o costume à época. Numa das salas, o teto é dividido em oito virtudes, pinturas que talvez tenham inspirado os ânimos nas poltronas talhadas e aveludadas, espalhadas pelo salão.
Conhecemos os aposentos íntimos, noto, as camas são curtas. Logo sou informada de que os reis dormiam recostados à cama, recostados depois de comer a última ceia do dia. Visito a parte da cozinha onde se guardam as panelas, todas de cobre com o nome “Casa de Bragança” gravado em cada peça do metal. Panelas enormes para banquetes que fizeram os reis dormirem recostados, eles e seus convidados. São inúmeras fôrmas de bolo, penso, dando formatos suntuosos aos bolos e pudins. Mas voltemos aos quartos: nas paredes, sedas vivas, cores sóbrias em alquimia perfeita, aquecem o inverno e refrescam o verão. Há um corredor por trás do escritório e dos aposentos, o rei dorme em um aposento, a rainha em outro. Não era aconselhável que um rei ficasse pelas pontas dos corredores, mas pelo meio, onde há acesso ao corredor atrás dos aposentos. Há cuidado e vigilância na área privada. Numa visita a qualquer palácio, o que mais me carrega ao tempo, é o lugar onde se viveu a intimidade, não só dos corpos, mas do pensamento.
No Jardins do Paço Ducal, o feno plana com o vento das cinco da tarde, um dos pavões se faz ouvir em outros reinos, outros passarinhos sucedem a estridência do pavão. Passarinhos cantam como a penugem das plantas, estas que voam por quem passa. Tenho impressão de poder tocar o pólen que, tão grande, de onde estou, perto da garagem das carruagens, parecem hóstias.
Saímos do Jardim a tempo de entrar no quarto de Florbela Espanca, agora a intimidade é conhecida pelos livros do lirismo mais comovente escrito em língua portuguesa. O quarto de uma das maiores autoras de todos os tempos, é pequeno, sóbrio, não há sedas, nem as panelonas dos banquetes, tampouco o recurso de vigilância, mas há outra nobreza e outros perigos. A nobreza de suas cartas, sua letra vibra como alguém vivo, elétrica como alguém quem não escapa da tormenta emocional. É sabido que o canto é sublime diante do imponderável; também notamos, pelos registros de sua biografia, os perigos de existir e possuir a marca do talento que dirige às palavras a fúria da paixão portuguesa.
Me despeço do Alentejo no próximo destino: Marvão. O trajeto até a aldeia é descrito com espanto por José Saramago: “que grande é o mundo”, escreveu o autor, diante de Marvão. Eu concordo e acrescento: que grande é o homem que reconhece o tamanho do mundo e seu próprio: menor que o abismo que o espanta, maior que o jardim que não tem pernas para caminhar como nós, viajantes. Esta não foi qualquer viagem ao Alentejo, pois fui guiada por José Luís Peixoto, notável alentejano, que conduziu meu olhar através de sua infância e legado. São outras lentes, das que resistem ao sol.”
Andréa Del Fuego
O que visitar
Na viagem revisitada de José Luís Peixoto, estes foram alguns dos locais destacados pelo seu olhar e pela sua escrita.
“Na Serra de São Mamede, o mês de maio escorre sem pressa. Nesta época do ano, cada passo entre os carvalhos e castanheiros assenta num chão antigo, fonte de murmúrios. Este silêncio não é feito de ausência: é um sopro vegetal, húmido, que toca levemente o musgo, as pedras existem no interior desse verde, protegidas. O ar faz flutuar o aroma do alecrim bravo. A brisa, por vezes fresca, desce das alturas, lá de cima. A brisa sabe histórias que não ousa contar. E tudo é lento: o voo das aves, a luz filtrada pelas folhas, o compasso do coração ao subir estas encostas. A serra observa, é enorme e contida. Quem está agora em Marvão, nas muralhas do castelo, tem esta vista imensa diante de si. Lá, percebemos o tamanho da serra e, ínfimos, comparamo-nos com ela, mas é aqui, no seu interior, que sentimos a verdadeira vertigem. Há momentos em que acreditamos ter-nos fundido com a Serra de São Mamede. Pertencemos ao rumor dos arbustos, ao eco da pedra, a esta solidão que acolhe”
José Luís Peixoto
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D. Manuel II, o último rei de Portugal, foi um ávido colecionador e catalogador de livros, nomeadamente de primeiras edições da poesia épica de Os Lusíadas, que hoje se encontram no Museu-Biblioteca do Paço Ducal de Vila Viçosa. Foi por sua decisão, partilhada em testamento, que este monumento nacional, localizado no Terreiro do Paço da vila, reabriu, após a criação da Fundação da Casa de Bragança. Com construção datada do século XVI, o Paço Ducal de Vila Viçosa foi um dos palácios de veraneio de D. Carlos I e de D. Amélia. Hoje, convida à contemplação de coleções de pintura, escultura, mobiliário, tapeçarias, cerâmica e ourivesaria, numa visita pelo Andar Nobre. Espaços como a Sala dos Duques, a Cozinha e os Jardins retratam a imponência e as paixões da monarquia.
Erguidas no ponto mais alto da Serra de São Mamede, as muralhas medievais do Castelo de Marvão dominam a paisagem, oferecendo vistas panorâmicas inspiradoras sobre o Alentejo. Percorrer as estreitas ruas do centro histórico, atravessar as casas de pedra, demorar o olhar à chegada de cada miradouro e visitar a Torre de Menagem, é um convite a viajar no tempo e a sentir uma conexão profunda com a natureza e a tranquilidade do interior. No verão, o Castelo de Marvão acolhe o FIMM – Festival Internacional de Música de Marvão, recebendo músicos clássicos e uma programação onde a cultura é rainha.
Embora o túmulo da Rainha Santa Isabel esteja localizado no Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, em Coimbra, esta capela é um dos locais de culto e de veneração à sua figura, sendo um ponto importante na história de Estremoz. Exemplo notável da arquitetura medieval alentejana, o seu interior resguarda uma coleção de telas a óleo e de painéis de azulejo azuis de enorme carga simbólica e histórica, que narra episódios de generosidade, como o Milagre das Rosas, que estiveram na base da canonização da rainha há 400 anos.
Galveias, berço de José Luís Peixoto, é uma aldeia que respira história e tradição. A Rua José Luís Peixoto é um tributo ao escritor, ao passo que o Centro de Interpretação, edificado em sua homenagem, oferece uma imersão na sua obra e na sua relação com as raízes. Um dos pontos mais emblemáticos de Galveias é a Fonte da Vila, datada do século XIX, um símbolo da vida rural e da importância da água para a comunidade ao longo dos séculos. Com a sua simplicidade e autenticidade, Galveias é um lugar onde o passado e o presente se encontram, uma fusão que pode também ser sentida ao sabor do vento num dos dois Baloiços de Portugal existentes nesta vila.
A gastronomia alentejana é marcada por sabores intensos e autênticos. A açorda, feita com pão, alho, azeite e coentros, é um prato reconfortante, muitas vezes acompanhado de peixe ou de carne. Já as migas, com pão, alho e azeite, ganham sabor extra com os enchidos da região. Por sua vez, a sopa de tomate, com tomates frescos e azeite, é outro clássico da zona. A doçaria também se destaca pela variedade. Da sericaia com ameixa de Elvas ao pastel de castanha de Marvão, passando pela tiborna de Vila Viçosa, feita com gila e amêndoa, e pela gadanha de Estremoz, rica em ovos e tradição, cada doce é uma paragem nesta viagem de sabores que contam histórias.
Setúbal
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Estremoz, Vila Viçosa e Marvão -